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27/04/2018 às 10h27min - Atualizada em 27/04/2018 às 10h27min

'Minha vida é ficar no porão o dia todo', conta síria que vive com 150 pessoas no subsolo de Guta Oriental

Moradora da cidade de Duma relata ao G1 como é viver no cerco das tropas de Bashar al-Assad. Guerra civil da Síria completa 7 anos nesta quinta-feira (15).

Marina Franco - Jornal In Foco
g1.globo.com
Fumaça é vista após bombardeio no dia 12 de março na cidade de Zamalka, em Guta Oriental (Foto: Ammar Suleiman/AFP)
Há 5 anos, Nisreen* teve que adaptar sua vida à falta de eletricidade e gás, porque o regime de Bashar al-Assad cortou o fornecimento ao cercar a região de Guta Oriental. Também passou a viver em alerta, para se proteger de bombardeios que poderiam ocorrer no seu trajeto percorrido à pé à mesquita ou à escola em que trabalhava. Há pouco menos de um mês, os ataques se intensificaram a tal ponto que teve de largar o trabalho e passar boa parte do dia em um porão com familiares e vizinhos. Há três semanas, sua casa foi totalmente destruída.
 
 
Nisreen tem 38 anos e é moradora de Duma, a maior cidade de Guta Oriental. A região que fica nos subúrbios de Damasco é um dos últimos redutos de rebeldes da Síria que lutam contra as forças de Assad. Em três semanas de intensos bombardeios com apoio da Rússia, mais de mil civis morreram. Em todo o país, a guerra civil, que completa 7 anos nesta quinta-feira (15), deixou 500 mil mortos, segundo o recente balanço do Observatório Sírio de Direitos Humanos (OSDH).
 
Formada em arquitetura pela Universidade de Damasco, Nisreen não conseguiu seguir carreira por causa da guerra. Passou a dar aulas em uma escola para ajudar as crianças da sua cidade. Hoje tenta continuar com as aulas no porão.
 
“Não conseguimos usar as escolas porque elas são bombardeadas o dia todo. Nós usamos os porões. Não temos livros escolares porque o regime impediu que eles entrassem em Guta durante o cerco. Na maior parte do tempo, dependemos das organizações para nos trazer alguns desses instrumentos para o processo educacional”, diz ao G1.
 
Grande parte dos 400 mil civis que estão sitiados em toda Guta Oriental usam o subsolo de prédios que não foram destruídos para se proteger dos ataques aéreos. O porão em que Nisreen se esconde em média 20 horas ao dia tem cerca de 300m2 e abriga por volta de 150 pessoas, sendo 70 crianças. Nele, não há ventilação nem luz natural.
 
“Se estamos sentados, OK, é aceitável. Mas quando queremos dormir, temos que dormir um ao lado do outro, não há espaço para qualquer outra pessoa”, diz. “É muito incômodo. As crianças choram o dia todo, elas têm medo do som dos bombardeios”.
No momento em que percebe que os bombardeios deram uma pausa, Nisreen sobre para o apartamento que fica em cima do porão, que é de sua irmã, para cozinhar. Ela foi morar lá depois que sua casa foi totalmente destruída em um bombardeio há três semanas. “Temos sorte porque temos um apartamento em cima do porão, mas muitas das famílias não têm para onde ir, eles têm que ficar lá 24 horas”, diz.
 
“Minha vida agora se tornou apenas ficar no porão o dia todo. Temos um ou dois momentos que conseguimos ir a nossas casas e preparar alguma comida para as crianças, se há alguma comida, e então voltamos ao porão. A vida sumiu completamente na minha cidade, em toda Guta, na verdade”, lamenta.
Para cozinhar, Nisreen usa madeiras de seus móveis que foram destruídos. Segundo ela, a demanda por madeira em Guta Oriental forçou o desmatamento de 70% das árvores da região, antes conhecida por sua produção agrícola e fornecimento de vegetais e frutas à capital Damasco.
Sua família se alimenta, basicamente, de arroz e trigo que conseguiram guardar. Antes da recente ofensiva ainda era possível encontrar alguns produtos em mercados, mas hoje eles não existem mais. “Não há mercados, não há compras em absoluto. Estamos trancados em nossas casas. Não casas, na realidade, nossos porões”, lembra.
 
“Há famílias que dependem totalmente de caridade. Quando distribuem comida eles comem, senão ficam famintos sem comida”, conta. “Graças a Deus com o meu trabalho eu guardei um pouco de dinheiro. Mas não será suficiente para sempre”, acrescenta.
 
Ofensiva a Guta
Apesar de Guta Oriental ser isolada e bombardeada há anos, nos primeiros anos da guerra as forças de Assad negligenciaram a região de cerca de 100 quilômetros quadrados, porque se concentraram em recuperar áreas consideradas cruciais para a sobrevivência do governo. Agora tentam retomá-la à força.
O cerco gerou falta de alimentos, fome e, segundo o Unicef, a pior crise de desnutrição desde o início da guerra em 2011, com 12% das crianças menores de 5 anos sofrendo de desnutrição grave. Os comboios humanitários da ONU raramente conseguem entrar na região. O regime é acusado de promover ataques químicos, com gás sarin e cloro.
 
No último final de semana, o Exército sírio anunciou que ganhou terreno na região de Guta Oriental. Conseguiu isolar Duma e Harasta do restante do enclave e conquistou a cidade de Madira.
 
Apesar de a ONU ter aprovado um cessar-fogo para a região, ele não foi colocado em prática. Nem mesmo durante as cinco horas diárias, que os russos se comprometeram a respeitar, a trégua humanitária funcionou. A Rússia culpa os rebeldes.
 
7 anos de guerra
A guerra teve início com protestos inspirados pelas revoluções da Primavera Árabe, reagindo à prisão e tortura de dois adolescentes que tinham grafitado o muro de uma escola. Com caráter pacífico, os protestos reivindicavam mais democracia e liberdades individuais. Com a repressão violenta das forças de segurança, os protestos foram se espalhando pelo país e se transformando em uma revolta armada de vários grupos com o objetivo de derrubar o regime.
 
O recente relatório da comissão da ONU de investigação sobre a Síria denunciou que a violência no país, em vez de diminuir, como se chegou a acreditar, voltou a aumentar. O relatório destacou violações cometidas por todas as partes envolvidas no conflito: as forças de Assad, a Rússia, a coalizão aérea liderada pelos EUA e os rebeldes.
 
Futuro
Diante da violência sangrenta, Nisreen, que perdeu três primos em bombardeios, diz que nunca considerou deixar a Síria, nem Duma.
 
“Nosso país é lindo e estamos em uma guerra muito violenta, mas não estamos pensando em sair. Não quero ser uma refugiada em qualquer país. Eu prefiro morrer aqui do que sair do meu país”, diz.
 
Ela lembra que antes da guerra ia a parques, restaurantes, museus e teatros e lamenta que as crianças de hoje não tenham conhecido uma vida mais próspera. “Nossas crianças não conhecem os parques nem restaurantes. Não sabem o que é um micro-ondas, como funciona uma geladeira. Nossa infância foi feliz e a infância das nossas crianças hoje é miserável”, diz.
 
“Não sei quando [a guerra] vai acabar ou se ainda vai acabar. De qualquer jeito, ainda tenho esperança. Quero que a vida volte. Quero olhar nos olhos das crianças e ver felicidade, não medo”, afirma.
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