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27/11/2017 às 10h01min - Atualizada em 27/11/2017 às 10h01min

'Encantados' é inspirado na vida da pajé Zeneide Lima

Dominik Giusti
Diário do Pará

A história mística da pajé cabocla Zeneida Lima, de Soure, na Ilha do Marajó, agora será compartilhada com milhares de espectadores. Ela é a personagem principal do filme “Encantados”, com direção de Tizuka Yamasaki, e que reúne no elenco nomes como a paraense Dira Paes, Ângelo Antônio, Letícia Sabatella, Anderson Muller, Thiago Martins, José Mayer, além de Carolina de Oliveira, que à época das gravações tinha apenas 13 anos. A população sourense conferiu com exclusividade uma pré-estreia na cidade natal da pajé, no último sábado, 18, onde cerca de 1,5 mil pessoas assistiram ao longa-metragem de 78 minutos ao ar livre, na Praça Independência. 

Depois de nove anos, o filme - que entrará no dia 7 de dezembro no circuito de cinemas do Pará, nas cidades de Belém, Paragominas, Parauapebas e Castanhal - apresenta a infância de Zeneida e a relação com a sua família, mostrando como se deram os primeiros sinais, ainda menina, de que ela viraria uma pajé. O seu pai, Angelino Lima, que fora importante advogado e influente deputado no início do século 20, aliado do intendente Magalhães Barata, não aceitava os dons naturais de Zeneida e hesitou um bocado para convencer-se das habilidades dela como curandeira. A diretora mostra esse conflito na trama e ao mesmo tempo a vocação de Zeneida e suas visões dos “encantados”, ou seja, os caruanas, seres das águas doces. 

A obra, uma coprodução entre Globo Filmes e Scena Filmes, foi baseada no livro “O Mundo Místico dos Caruanas da Ilha do Marajó” - o mesmo que inspirou o enredo da escola de samba “Beija Flor”, no carnaval carioca de 1998. Na publicação, ela conta com detalhes sobre suas visões e os 17 dias que passou nas matas alagadas de Soure, como foi encontrada e devolvida à família. 

A adaptação do livro não é literal e Tizuka buscou um olhar poético sobre a trajetória inicial de Zeneida no mundo da pajelança, com uma história de amor entre ela e um encantado de nome Antônio (Thiago Martins). “Queria que o filme não fosse didático, é chato. Queria mesmo linguagem audiovisual com dramaturgia, por isso foi muito difícil em termos de concepção de roteiro. Optamos por contar apenas a infância dela com toques de ficcão, como o personagem Antônio, que é o caruana por quem ela se apaixona. Era proibido um ser encantado se apaixonar por um ser vivente. Mas ela nao quer nem saber. Busquei sintetizar, pequei um momento do livro, quando ela decidiu ser pajé e dentro disso coloquei os fatos principais desse período, quando ela fica presa numa despensa, quando sai voando para se livrar do pai, e quando ela pega um rifle e ameça o pai dela”, explicou a diretora. 

A atriz Dira Paes, que interpreta a empregada Cotinha, e durante as filmagens estava com o primeiro filho, Inácio, recém-nascido, foi também quem auxiliou com o linguajar paraense e a entonação correta de palavras como “égua”, “quede” (como sinônimo de cadê), e sobre os trejeitos de pessoas do interior. 

O filme é recheado de referências aos costumes de Soure, como o carimbó, o passeio de búfalo e as comidas regionais - em determinada cena , Cotinha chama os irmãos de Zeneida para comer tapioca. 

A diretora diz que observou essa conexão do público e avaliou como positiva a recepção de sua obra pelos cidadãos de Soure. “Fiquei impressionada com aquele mundaréu de gente. As pessoas levaram cadeiras de suas casas. Atrás da tela tinham pessoas assistindo o filme ao contrário. Fiquei andando pela plateia para ver as reações, ninguém saiu. Acho que o filme prendeu, estou bem feliz”, disse.

A pequena Zeneide e a empregada Cotinha, vivida por Dira Paes, única paraense no elenco principal (FOto: Divulgação)

Cultura cabocla para o mundo ver

Para Zeneida Lima, o filme “Encantados” é uma forma de mostrar a sua cultura e a sua tradição, sem preconceitos. “Esse filme veio como um reconhecimento, para me acalentar. Estou muito feliz em mostrar que eu não sou o que pensavam há 20 anos, quando mais de 300 pessoas foram para a porta da minha casa para me matar, dizendo que eu era uma bruxa, uma comunista que comia criancinhas. Foi preciso os ‘Direitos Humanos’ virem aqui. Para mim é uma bênção da natureza, as energia estão em todo lugar, elas promoveram esse filme para mostrar o cuidado que devemos ter pela natureza. Nós somos parte dela, temos que ter cuidado com a nossa terra, nossas águas, se não vamos acabar com o planeta”, observou.

A professora Marlene Santos, 61, foi conferir a pré-estreia e ficou orgulhosa de ver a sua cultura nos cinemas. “O meu avô também era pajé, eu acredito nisso. No mundo, tudo existe. Sou católica, mas sei que esses seres encantados existem por aqui. Os caruanas são essas entidades que nos protegem e, para nós, o pajé é importante para a cura das pessoas. Achei o filme excelente porque a nossa cultura vai sair do Marajó”, disse após a sessão ao ar livre. 

LONGO CAMINHO

O filme começou a ser rodado em 2008 e a equipe passou dois meses em Soure preparando toda a logística para as gravações. O elenco também foi preparado especialmente no local, com sessões de interpretação dentro d’água. Por conta da dificuldade de captação - o orçamento de R$ 10 milhões foi reduzido para R$ 6 milhões - Tizuka Yamasaki precisou adaptar o roteiro e repensar em estratégias de filmagem. Uma primeira versão foi apresentada em 2014, no Festival de Miami, mas a versão final sofreu alterações. Fafá de Belém, que estava na versão inicial, foi cortada, por exemplo. 

Antes mesmo de estrear, o filme foi premiado na 38ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, como melhor filme brasileiro na categoria Festival da Juventude, em 2014, e abriu o Brazilian Film Festival of Miami, em 2016 - foi uma escolha da diretora fazer o filme circular nos festivais antes de entrar nas salas comerciais.

Tizuka também conquistou o prêmio de melhor diretora por “Encantados” no 31º Festival de Cinema de Trieste, na Itália, em 2016, pela harmonia da obra. Manter o projeto, mesmo com tantos problemas, foi uma teimosia, como diz Tizuka. “Falar sobre esse universo da Zeneida não é qualquer um que iria fazer. Queria descobrir isso e percebi que era uma temática importante para mostrar no Brasil e lá fora. Não tinha dinheiro, mas insisti
e fizemos”, conta.


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