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05/06/2018 às 11h58min - Atualizada em 05/06/2018 às 11h58min

Irlanda aprova legalização do aborto, com 66,4% de votação popular

De maioria católica, país proibia interrupção da gravidez em praticamente todos os casos; Agora, só Polônia e Malta mantêm proibição na Europa

O Globo - Jornal In Foco
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O Globo
DUBLIN - A Irlanda aprovou, com 66, 4% dos votos, a legalização do aborto. O "sim" venceu em um referendo realizado no país na última sexta-feira para revogar a oitava emenda à Constituição. Os resultados definitivos foram divulgados na tarde deste sábado no castelo de Dublin. A decisão é histórica em um país com fortes raízes católicas.
Com isso, o aborto passa a ser permitido de forma irrestrita em solo irlandês até a 12ª semana de gestação, e em caso de risco para a saúde da mulher e anormalidade fetal até a 23ª semana.



Até então, a Irlanda tinha uma das legislações mais restritivas da Europa sobre o tema. Na prática, o aborto era proibido em praticamente todos os casos. Com a reforma da lei de aborto, a Irlanda deixa para trás a Polônia e Malta, os únicos países europeus que continuam a proibir a interrupção da gravidez.

O primeiro-ministro da Irlanda, Taoiseach Leo Varadkar, destacou que o que ocorre atualmente no país é uma "revolução silenciosa". Em um tuíte, o político — que já havia se manifestado a favor da legalização — escreveu: "Fantástica multidão no Castelo de Dublin. Dia memorável. Uma revolução silenciosa aconteceu, um grande ato democrático".
 
Falta apurar os votos recebidos em apenas três zonas eleitorais: Cork East, Sligo-Leitrim e Donegal. Esses três locais podem ser os únicos, prevêem analistas, em que o "Não" deve predominar. Mesmo assim, matematicamente, nao é mais possível que o resultado final se modifique.

A capital, Dublin, votou majoritariamente pelo "Sim", superando a média nacional, como analistas já haviam previsto. Na região de Dublin Bay South, por exemplo, 78,49% dos votos foram pela descriminalização do aborto. Em Dublin Mid-West, 73% da população votou no mesmo sentido.



Ainda pela manhã, quando somente as primeiras zonas eleitorais haviam sido apuradas, o diretor de comunicação de uma das principais campanhas antiaborto, John McGuirk, já havia admitido a derrota:

— Há pessoas que estão profundamente desiludidas com este resultado — disse ele à BBC.

McGuirk é líder da campanha "Save The 8th", em referência à Oitava Emenda à Constituição, aprovada em votação popular em 1983. Essa emenda deu ao feto o mesmo status de alguém que já houvesse nascido, impedindo, na prática, que qualquer gestação fosse interrompida, mesmo em casos de estupro, incesto e malformação do feto. A única exceção era risco para a saúde da gestante — direito que só foi conseguido em 1992, numa alteração dessa emenda.

Ainda na noite de sexta-feira, a primeira pesquisa de boca de urna já indicava uma vitória da reforma de 68%.Lisa O'Carroll, correspondente do jornal britânico "Guardian", destacou neste sábado no Twitter o quão esmagadora foi a vitória do "Sim" no referendo: ela compartilhou uma imagem do mapa da Irlanda todo em roxo, cor usada para demarcar as regiões que votaram a favor da legalização.

"Esta é uma baita visão de um dia histórico", escreveu ela.

 COMO ERA A LEI QUE AGORA FOI REVOGADA?

As regras sobre o aborto na Irlanda estavam contidas na Oitava Emenda à Constituição irlandesa, aprovada também em uma votação popular em 1983, por uma pequena margem de votos e com uma participação um pouco acima da metade do total de eleitores. Nessa emenda, todo tipo de aborto foi proibido, uma vez que o feto ganhou status de "pessoa física", assim como a gestante — e isso fez com a vida de ambos tivesse a mesma importância.

A pena para as mulheres que interrompessem a gravidez em solo irlandês passou a ser, com a oitava emenda, de 14 anos de prisão.

Nos anos seguintes houve uma pequena flexibilização, depois de casos polêmicos. Em 1992, uma adolescente de 14 anos conhecida apenas como "X" engravidou após um estupro e passou a ter pensamentos suicidas por causa da gestação. Depois de casos como esse, ficou estabelecido que mulheres poderiam abortar caso a gravidez representasse risco grave para sua saúde, ainda que fosse a saúde psicológica.

IRLANDESES QUE MORAM FORA VOLTARAM PARA VOTAR

A Irlanda sempre foi considerada a grande representante dos movimentos pró-vida dentro da União Europeia, uma espécie de "bastião" da campanha anti-aborto. Desde 1983, quando a oitava emenda foi aprovada, cerca de 180 mil mulheres irlandesas já se deslocaram para a Inglaterra com o objetivo de fazer aborto em clínicas inglesas.

Nesta semana, o movimento observado foi o inverso: as passagens de avião de Londres para Dublin chegaram a esgotar em alguns dias, com muitas mulheres irlandesas que moram fora de seu país natal retornando apenas para participar do referendo.

Mulheres foram ao aeroporto de Dublin apoiar todos os irlandeses que vêm de outros países somente para participar do referendo. No cartaz da foto, lê-se "Obrigada por fazer essa viagem, para que outras mulheres não precisem fazer", referindo-se ao fato de aquelas que querem abortar precisam ir a outros países - Reprodução da internet
 
Os votos desses milhares de irlandeses que voltaram para casa para contribuir com a decisão foram considerados decisivos. Alguns relataram nas mídias sociais que vinham de lugares distantes como Estados Unidos, Austrália, Vietnã e Argentina, só para poderem votar.

A hashtag #HomeToVote (algo como "em casa para votar") passou a ser muito utilizada no Twitter, em postagens que mostram pessoas chegando à Irlanda e incentivando seus compatriotas a participarem também do referendo.

E não foram apenas as mulheres que voltaram para casa para votar. Uma mãe orgulhosa postou no Twitter que ela tinha acabado de pegar seu filho no aeroporto. Ela destacou isso porque existe o receio de que os homens que se opõem ao aborto definitivamente votarão, enquanto os homens que acreditam que a questão do aborto deve ser uma escolha da mulher podem ser menos propensos a votar. Noeleen McHugh disse que seu filho estava em casa para retribuir um favor:

“Em 2015, a Irlanda lhe deu um direito — o direito de se casar. Nesta sexta-feira, ele devolverá o favor e votará para dar às mulheres o direito de tomar decisões sobre seus próprios corpos”, disse ela, sobre o filho.

TRÊS ANOS APÓS APROVAÇÃO DO CASAMENTO GAY

O referendo acontece três anos depois que a Irlanda se tornou o primeiro país do mundo a aprovar o casamento entre pessoas do mesmo sexo, também por meio de uma votação popular, confirmando uma mudança profunda na cultura e no comportamento social da população. A aprovação do casamento gay foi considerada um verdadeiro terremoto em um país outrora fervorosamente religioso.

A predominância de católicos no país é um dos principais empecilhos para a reforma da lei sobre aborto. De acordo com dados oficiais de 2016, 78% da população da Irlanda se declara católica, no entanto a Igreja vem perdendo influência nas últimas décadas. A proporção é significativamente menor entre pessoas com menos de 35 anos. Entre 1972 e 2011, a frequência de ida semanal à igreja caiu de 91% para 30%. Em Dublin, esse índice caiu para 14%.
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